O centenário do escritor e crítico de arte que deixou expressivo legado em SC
Algumas pessoas, após a morte, se sentem vibrantes, aparecem em nova corporeidade, na configuração das ideias, no legado de suas escritas, livros, pensamentos, algo intangível e imensurável. Tangentes, no atravessamento de décadas, seus acervos continuam intensos, se não pela força de ações físicas e intelectuais, pela falta que representam no universo em que atuaram como protagonistas. O jornalista, crítico de arte, escritor e gestor de museus Harry Lausque estaria completando cem anos neste 11 de dezembro, está na história cultural de Santa Catarina e do Brasil como um homem ousado e inovador que transformou caminhos e existências.
Para marcar o centenário, na última quarta-feira instituiu-se o programa “Homem Plural – 100 Anos de Harry Laus” –, uma realização do Masc (Museu de Arte de Santa Catarina) com o apoio da FCC (Fundação Catarinense de Cultura) , ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), do MIS (Museu da Imagem e do Som), Instituto Collaço Paulo – Centro de Arte e Educação e da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
Além deste primeiro encontro que entrelaçou a literatura de Laus no cinema e seus arquivos, uma de suas tantas facetas, o tributo segue em 2023 nos dias 12, 19 e 26 de abril. A vida e a obra serão revisitadas por convidados e discussões que pretendem alinhar memórias e análises sobre a amplitude do legado deste tijucano.
Autor de 12 livros, entre romances, novelas e contos, foi traduzido na França, onde se consagrou com “As Horas de Zenão das Chagas” e “Os Papéis do Coronel”. Novela publicada em 1981 com ilustrações de Darcy Penteado, “Monólogo de uma Cachorra sem Preconceitos” também é bem importante na carreira do escritor.
Como crítica de arte começou no Rio de Janeiro, em 1961, no jornal “Correio da Manhã”. Entre 1963 e 67, entrou na ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte) e na Aica (Associação Internacional de Críticos de Arte); atuou no “Jornal do Brasil”, onde criou a exposição “Resumo”, na qual destacou os talentos do ano. Até meados dos anos 1970, integrou júris em salões e bienais; fez curadorias, como a da mostra “Desenhos Inéditos de Portinari” e “Esculturas Monumentais” em São Paulo, onde em 1974 conduziu a Kompass Cultura e Galeria de Arte.
Ao retornar, em 1976, voltou para Santa Catarina como um dos críticos mais celebrados do Brasil. Inicialmente, morou em Florianópolis. No bairro Bom Abrigo, com Sálvio de Oliveira, fundou o Centro de Arte que durou cerca de um ano. Em 1979, em Balneário Camboriú, foi o curador do Pan’Arte, uma mostra que reuniu mais de 500 trabalhos e trouxe importantes críticas do eixo Rio-São Paulo.
No campo institucional, dirigido o Masc (1985-87 e 1989-92) e o MAJ (Museu de Arte de Joinville) entre 1980 e 82; escreveu o valioso “Indicador Catarinense das Artes Plásticas” e deixou 120 textos críticos publicados em diferentes jornais e revistas sobre as representações artísticas de Santa Catarina, do Brasil e do mundo. Definia-se não como crítico, mas como um “repórter das artes”.
Promoveu panoramas, retrospectivas, perspectivas, como denominava as mostras que fazia questão de levar a outros Estados. Dedicou 16 anos de vida, entre 1976 até a morte, ao fortalecimento das artes. Sua contribuição, além do textual, se deu como um sujeito de ação que constituiu acervo e memória, fez conferências e parcerias, seminários, júris, conselhos, montou curadorias e programas de arte educação.
Servidor, singular em suas crenças e trabalho, Laus pensava no coletivo, na visibilidade e no engrandecimento cultural do Estado. Merecidamente, fora outras condecorações, foi homenageado em 1997, quando in memoriam recebeu a Medalha de Mérito Cultural Cruz e Sousa.
Cidadão múltiplo muito antes de todos
Os paradigmas contemporâneos pedem o pluralismo e se abrem para as diferenças e a multiplicidade, permitem o abandono do lugar fixo nas representações artísticas, rompem com as fronteiras entre a chamada cultura erudita e popular. Um homem à frente do seu tempo, despertou talentos e deu luz à caminhada de muitos artistas. Além disso, foi arquivista da própria vida e criação.
Laus deixou diários, anotações, livros, textos, fotografias, recortes de jornais, cartas que estão disponíveis no Nulime (Núcleo de Pesquisa de Literatura e Memória), na UFSC. Para alcançar uma compreensão da amplitude de sua atuação, precisa-se pensar nele fora do narcisismo endêmico contemporâneo.
Como é possível olhar para esse homem neste momento? Um “calculador”, um ser competitivo que atua na lógica de relações humanas manteve-se à regra do máximo proveito e eficiência. Ele foi o contrário disto tudo porque viveu quando ainda não se enfrentava a violência da superprodução, do superdesempenho e da supercomunicação.
Personalidade pública, tinha viés renascentista. Líder, um humanista que valoriza o saber crítico e põe o homem no centro do universo, concepção essencial à renascença cultural (movimento artístico e filosófico surgido na Itália no século 15), uma característica que ajuda Laus a mudar mentalidades e renovar áreas do conhecimento em Santa Catarina. Laus acredita no trabalho e no progresso humano por meio da literatura e das artes visuais.
Líder de uma geração de artistas
Em artigo recente, o escritor e professor Jayro Schmidt se destaca como “maravilhas inventivas” em sua literatura e o define como um autor de “obras vultosas”. Lembra também que “o prestígio da crítica de arte, com participações radicais na imprensa nacional, teve como principais consequências: foi diretor do MAJ e administrador do Masc, o que implementou soluções museológicas em todos os aspectos e ensinando a equipe, como confirmam os artistas Patrícia Amante e Ronaldo Linhares”. Para Jayro, Laus foi o “primeiro curador de arte no Estado, portanto, avant la lettre, lidera toda uma geração de jovens artistas que, em grande parte, fica órfã em 1992, com sua morte em Florianópolis”.
Ronaldo Linhares, que atuou com Laus, fala com entusiasmo: “Grande Harry que, além de toda a bagagem intelectual, era excelente administrador, sabendo engajar toda a equipe do Masc em torno do ideal de fazer dele ‘um dos principais museus de arte do Sul do país’”. Cheio de histórias para contar, diz ainda que Laus mudou sua vida e o modo de olhar para a arte. Muito culto, cativante, democrático, mas também furioso quando necessário.
Como gestor, muda a realidade artística e projeta Santa Catarina com articulações entre os Estados do Sul e o eixo Rio-São Paulo. Dinâmico, com falas honestas, grande capacidade de articulação, põe tudo a serviço dessa meta, media conflitos e interesses. Curioso, pesquisador, visita artistas, passa pelas redações, sensibiliza, escreve artigos, traz críticos, organiza dois museus, arquiva os vestígios das ações.
Ao se posicionar como guardião da memória, revela uma faceta interior. Na organização disciplinada, um toque narcísico ou atribuído de que pelo seu gesto é capaz de mudar a realidade? Baudrillard, pensador francês, e Walter Benjamin, filósofo alemão, pensam as coleções como um “sistema graças ao qual o indivíduo tenta reconstituir um mundo, uma totalidade privada”.
*Jornalista e integrante da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte)
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