Apelar ao “dinheiro esquecido” expõe buraco econômico de Lula
O apelo ao “dinheiro esquecido” dos brasileiros para compensar a desoneração da folha de pagamento, medida aprovada após negociação entre o Congresso e o Ministério da Fazenda, expõe novamente a dificuldade do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em equilibrar as contas públicas. Na avaliação de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, além de ser indevida e até mesmo de uma moralidade questionável, essa apropriação dificulta a leitura da real situação fiscal do país para os agentes econômicos.
O PL 1847/2024, que estabelece a reoneração, foi aprovado na noite de quarta-feira (11) e teve a análise das emendas ao texto concluída na manhã desta quinta-feira (12) pelo plenário da Câmara. De acordo com a proposta, os “valores a receber” esquecidos em contas bancárias poderão ser utilizados como compensação pela reoneração gradual da folha e, portanto, serão contabilizados no resultado primário – a diferença entre as receitas e as despesas governamentais ou entre a arrecadação e os gastos do governo.
Ou seja, no fundo, os R$ 8,6 bilhões que pertencem aos brasileiros e que estão sob a tutela do Banco Central serão incorporados à arrecadação do governo para ajudar a equilibrar o rombo de R$ 78 bilhões nas contas, registrado entre janeiro e julho deste ano, caso as pessoas que têm direito não fizeram os pedidos de resgate desses valores.
Além disso, o projeto de lei também prevê o uso de outros “dinheiros esquecidos” – como precatórios que não tenham sido “resgatados” em dois anos e ainda os depósitos judiciais que não foram levantados – para tapar o buraco do desequilíbrio fiscal da gestão de Lula.
Wanderson Dias Ferreira, auditor fiscal da Receita Federal e vice-presidente de Assuntos da Seguridade Social da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), afirma ser favorável à reoneração da folha, mas defende que a medida deve ser tomada por meio de uma legislação justa e equilibrada.
Segundo ele, a medida é importante para o equilíbrio fiscal e o financiamento da Previdência Social. Apesar disso, o auditor avalia que o “malabarismo fiscal” proposto pelo governo e aprovado pelo Congresso com o “dinheiro esquecido” é bastante heterodoxo.
“Embora a competência para enfrentamento do assunto seja dos corpos técnicos do Banco Central e da Secretaria do Tesouro Nacional, observa-se que sim, tecnicamente, os recursos esquecidos nas contas bancárias, da ordem de R$ 8,6 bilhões, não são uma receita do governo e geram dificuldade em sua contabilização”, salienta Ferreira.
Na mesma linha, Ranieri Genari, advogado especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/Ribeirão Preto, afirma que as medidas estipuladas no projeto são legais, todavia, “em que pese sua natureza puramente arrecadatória, denotam por si só uma certa imoralidade da administração pública”.
Questionado se não seria mais correto optar pela devolução desses recursos ao invés de utilizá-los para tentar sanar o rombo nas contas públicas, o advogado destacou que o governo teria total condição de buscar os “donos” desses valores, observando todo o rastreio digital que a própria Receita Federal, Banco Central e demais órgãos governamentais têm à sua disposição. Matéria da Gazeta do Povo explicou o passo a passo para você saber se tem “dinheiro esquecido” e como fazer o resgate em caso positivo.
No entanto, Genari avalia que se trata de uma barganha feita entre o governo e o Congresso, a fim de manter a desoneração conforme foi aprovada, com a reoneração gradual a partir de 2025. E que o processo de votação no Senado e na Câmara deixou claro que o governo não faria nenhum esforço para apresentar medidas compensatórias.
Oposição ao governo tentou travar votação e deve recorrer à Justiça para barrar uso de “dinheiro esquecido”
A contenda pelas regras da reoneração foi longa. No fim de 2023, o Congresso vetou a desoneração proposta pelo governo e, depois de diversas idas e vindas com o Ministério da Fazenda, foi aprovado o projeto que prevê a reoneração de forma gradual. No entanto, o texto proposto pelo Congresso não destacava de forma clara quais seriam as medidas de compensação – que devem ser tomadas todas as vezes que o governo renuncia a algum tributo ou receita.
A decisão foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF), que estabeleceu o prazo até quarta-feira (11) para que o governo e o Congresso estabelecessem uma proposta de reoneração. Na última hora, para não descumprir o prazo do STF, foi aprovado o texto-base da reoneração, contando com o uso dos valores a receber que estão no Banco Central, entre outras propostas. A oposição chegou a obstruir a pauta, com ação da deputada Bia Kicis (PL-DF), mas não conseguiu impedir a aprovação da medida.
Na manhã desta quinta, a deputada Adriana Ventura (Novo-SP) também tentou barrar a pauta com uma questão de ordem. Segundo ela, a emenda que propõe o uso desses recursos como compensação não seria de redação, pois envolve R$ 8 bilhões no caso dos bancos e R$ 12 bilhões no caso dos depósitos judiciais. Para a parlamentar, esses recursos não poderiam ser mexidos.
O deputado José Guimarães (PT-CE), relator do projeto e autor da emenda de redação, no entanto, argumentou que não há prejuízo para os cidadãos. Guimarães também é o líder no governo na Câmara.
Após a aprovação pelo Congresso, o ministro do STF Cristiano Zanin deu três dias ao governo para sancionar a nova lei – até a próxima segunda-feira (16). Caso o ministro não adiasse o prazo, os setores produtivos e os municípios beneficiados pela desoneração teriam que retomar o pagamento dos impostos a partir desta quinta-feira (12).
No entanto, a deputada Adriana Ventura afirmou que irá recorrer à Justiça. “A reoneração por si só é vergonhosa, pois estão passando por cima de uma decisão do Congresso Nacional [- que havia aprovado a prorrogação até 2027 com derrubada do veto do governo -] e agora estão confiscando dinheiro, tanto o do cidadão brasileiro esquecido nos bancos como de depósitos judiciais”, criticou.
Banco Central avisou que não pode contabilizar “dinheiro esquecido”
Na terça-feira (10), dia anterior à votação, o Banco Central enviou uma nota técnica aos parlamentares advertindo sobre a redação do artigo que prevê o uso do “dinheiro esquecido” e que, da forma como estava no texto, não poderia utilizar os recursos nos cálculos do resultado primário.
Vilma Pinto, economista e diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI), explica que há duas formas de se contabilizar o resultado primário: pelo cálculo das receitas (tudo que o governo arrecada) e pela ótica da variação da dívida, que é a adotada pelo Banco Central.
No caso do “dinheiro esquecido”, o texto-base do projeto o considera como receita orçamentária primária e, portanto, ele não é contabilizado pelo Banco Central. Por outro lado, o Tesouro Nacional calcula o resultado primário, mas pela ótica da Receita e, portanto, pode contabilizar as compensações do “dinheiro esquecido”, o que gera um descompasso entre os resultados produzidos por ambas as instituições.
Ranieri Genari explica que considerar como receita orçamentária primária as transferências para o Tesouro Nacional do “dinheiro esquecido” em contas bancárias inativas, fundos e similares está em total desacordo com as boas práticas de contabilização pública, usadas nas estatísticas fiscais. “Em outras palavras, seria o mesmo que forçar o Banco Central a promover de forma artificial registros de superávit primário”.
A advogada Beatriz Carvalho, da área de Direito Tributário do escritório Silveiro Advogados, afirma que, ao notificar os parlamentares, o Bacen deu indícios de que não aceitará a “flexibilização” proposta por governo e Congresso na apuração da receita primária federal.
Ela avalia ainda que não caberia à autoridade monetária dizer o que é ou não receita primária, mas tão somente apurá-la. “Certamente lhe compete, dentro de sua independência, identificar aquilo que possa ser prejudicial à contenção da inflação no país e/ou risco ao do teto de gastos governamental”, diz.
Governo já utilizou recursos não sacados do Pis-Pasep para reduzir déficit fiscal
Não é a primeira vez que o governo Lula se vale de recursos não sacados para reduzir o déficit fiscal. Governo e Congresso já adotaram uma medida similar com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, aprovada no fim de 2022. A PEC autorizou que o governo Lula também incorporasse como receita primária R$ 26 bilhões dos trabalhadores, esquecidos nas cotas do PIS/Pasep.
Naquela ocasião, o Tesouro seguiu o texto da lei e incorporou o valor no primário de 2023, o que não ocorreu com o BC, por adotar uma lógica de cálculo diferente. O resultado foi uma diferença bilionária nas duas contabilidades – segundo o Tesouro, o resultado primário em 2023 foi deficitário em R$ 230,5 bilhões, enquanto os cálculos do Banco Central apontaram para um déficit de R$ 264,5 bilhões.
O economista-chefe da Ryo Asset, Gabriel Leal De Barros, afirma que a diferença metodológica entre o resultado do Tesouro e do Banco Central não é algo novo, existe há muitos anos e até hoje há pendência por parte da Fazenda para uma proposta e elaboração de nova estatística. “Nesse ínterim, o Banco Central passou a fazer a apuração como apoio, mas a responsabilidade é do Ministério da Fazenda”, explicou.
Ele ainda explica que, assim como no ano passado, quando houve a diferença na apuração do resultado fiscal para efeito de cumprimento da meta de resultado primário entre o Tesouro e o Bacen, em razão dos recursos sacados do fundo do Pis/Pasep, essa divergência também irá ocorrer agora.
Segundo o economista, “o excesso de discrepância entre as estatísticas não é desejável, uma vez que turva a leitura da real situação fiscal para os agentes econômicos. É nesse sentido que a equipe econômica deveria formular de vez um manual de estatísticas fiscais, apoiado nas melhores práticas globais”.
STF tem decisão contrária à reincorporação de precatórios às contas do governo
Outro ponto controverso do projeto de lei da desoneração é a reincorporação de precatórios às contas do governo como compensação pela reoneração gradual da folha. Um precatório é uma requisição para que o governo pague suas dívidas junto aos seus credores, conforme decisão da Justiça.
De acordo com a proposta atual do Congresso, caso não seja recuperado pelos credores em 2 anos, esse tipo de “dinheiro esquecido” também poderá ser reincorporado às contas do governo. No entanto, Gustavo Bachega, advogado tributarista, coordenador do grupo 09 de trabalho da Reforma Tributária e presidente do Instituto Brasileiro de Precatórios (IBP), lembra que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou contra o resgate de precatórios não levantados.
Em 2017, por meio da ADI 5.755, de julho de 2022, o STF julgou inconstitucional o art. 2º da Lei 13.463/17. O artigo determinava o cancelamento de precatórios e Requisições de Pequeno Valor (RPV) federais depositados há mais de dois anos em bancos federais, caso não fossem sacados pelos beneficiários. De acordo com Bachega, o art. 39 do PL da reoneração é muito similar ao julgado pelo Supremo.
Naquela ocasião, o ministro Edson Fachin afirmou em seu voto que o direito ao valor depositado só se consuma com o saque, consolidando o entendimento de que a ausência do resgate não implica a perda do direito ao recebimento. Por essa razão, o advogado entende que é provável que haja contestação do artigo 39 do PL de reoneração.
À decisão do STF, soma-se uma do STJ, que também estabeleceu que o cancelamento de precatórios e Requisições de Pequeno Valor (RPV) federais entre 2017 e 2022 só seria válido se o credor não tivesse sacado o dinheiro por desinteresse, tornando-o ilegal caso não fosse comprovada a inércia do credor. Por essa razão, mesmo em caso de cancelamento, o credor passou a ter o prazo de cinco anos para fazer novo pedido de precatório, mantendo seu direito de receber o recurso.
Assim, Bachega afirma que no caso da reoneração, mesmo que os valores sejam resgatados pelo governo, isso não implica, necessariamente, na perda do direito de recebimento pelo credor. Esse cenário gera um ativo para o Executivo, mas, simultaneamente, cria um passivo, pois o credor mantém o direito de pleitear a restituição dos valores.
Fazenda tem discricionariedade para estabelecer receitas primárias
Para Beatriz Carvalho, a Lei Complementar 200/2023, a Lei do Arcabouço Fiscal, confere certa discricionariedade ao Ministro da Fazenda em relação àquilo que será considerado receita primária. No entanto, ela avalia que tanto a recuperação dos precatórios – haja vista o próprio posicionamento do STF sobre o tema – quanto a classificação como receita primária são controversas.
Já o advogado Ranieri Genari avalia que, ao receber de volta o valor dos precatórios, o governo inverte a dinâmica entre devedor e credor. A lógica é de que o valor de uma dívida, pago pelo governo, não deveria ser a ele estornada. No caso dos precatórios, a União não é possuidora de um direito ao crédito, ao contrário, tem contra si uma obrigação de pagamento, devidamente constituída e determinada judicialmente.
“Logo, pensando na lógica jurídica da situação, por essa medida aprovada ontem, inverte-se de uma só vez a posição de devedor e credor, como também se desrespeita frontalmente uma decisão judicial, que determinou o pagamento dos valores à outra parte, decisão a qual em nenhum momento tratou do destino do valor depositado, caso o credor dele não se apropriasse”, explica.