Acordo entre Mercosul e UE não cria livre comércio, diz ex-negociador

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Com a experiência de ter participado dos primos da negociação do acordo de integração entre o Mercosul e a União Europeia (UE), o diplomata aposentado José Alfredo Graça Lima considera que não se deve falar em negociações livres. Ele pontua que há diferentes tipos de mercadorias que possuem cotas de importação e exportação.

“Um acordo nessas bases não pode ser considerado como um livre comércio”, disse em entrevista à Agência Brasil nesta sexta-feira (6). “O tratamento que é dado ao sector agrícola é diferente do tratamento que é dado para os bens industriais, para os quais, no caso da União Europeia, as tarifas já são bastante baixas”, acrescentou.

Ao mesmo tempo, ele manifesta ceticismo quanto à possibilidade de disseminação de produtos eletrônicos eletrônicos pelo mercado brasileiro. “A Europa é muito pouco competitiva em comparação com a China. Então, mesmo que esse acordo entre o Mercosul e a União Europeia se concretize, não deve haver grandes mudanças na oferta de produtos importados europeus no Brasil”.

Graça Lima ocupou, entre 1998 e 2002, o cargo de Subsecretário-Geral para Assuntos de Integração, Economia e de Comércio Exterior do Ministério das Relações Exteriores. Na época, ele liderou as negociações comerciais bilaterais, plurilaterais, birregionais e multilaterais do Brasil e do Mercosul. As primeiras conversas com a UE se iniciaram em 1999.

Ao deixar o cargo em 2002, Graça Lima foi nomeada representante permanente do Brasil nas comunidades europeias, permanecendo sediada em Bruxelas (Bélgica) por quatro anos. Dessa forma, ele continuou envolvido nas tratativas do acordo até 2006. Atualmente, ele é vice-presidente do Conselho Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), um grupo de reflexão independente criado para contribuir com a discussão da agenda internacional do país.

A conclusão do acordo entre o Mercosul e a UE foi anunciada nesta sexta-feira (6), após mais de duas décadas de negociações que enfrentarão sucessivos entraves, envolvendo por exemplo questões ambientais e de protecionismo agrícola. O objetivo das tratativas era chegar a um consenso em torno de medidas para facilitar o acesso a mercados estratégicos, reduzir barreiras tarifárias e criar um ambiente mais favorável para investimentos e negociações comerciais.

O anúncio ocorreu no Uruguai, durante a 65ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul. Conforme divulgado ao governo brasileiro, o Mercosul se comprometeu com uma ampla liberalização tarifária, envolvendo cestas de produtos de forma imediata ou linear ao longo de prazos que variam entre 4, 8, 10 e 15 anos. Já a UE teria apresentado um escopo ainda mais abrangente. De acordo com o governo brasileiro, apenas uma parcela muito reduzida dos bens ficará sujeita a cotas ou outros tratamentos não tarifários.

Foram negociadas condições especiais para o setor automotivo. Os efeitos serão gradativos para os veículos eletrificados, movidos a hidrogênio e novas tecnologias, com prazos fixados em 18, 25 e 30 anos, respectivamente. Regras específicas também foram definidas para outros bens, a exemplo dos minerais críticos, que são considerados fundamentais para a transição energética. O acordo permite que o Brasil aplique restrições às exportações desses minerais se julgar seletivamente, mas a alíquota aplicável à UE deverá ser mais baixa do que um incidente sobre outros destinos.

Graça Lima vê pouca ambição em alguns mecanismos de acordo. “Eu diria que o resultado tem mais impactos do ponto de vista político-institucional do que do ponto de vista de acesso aos mercados. Não há ganhos espetaculares. Veja o tratamento dos automóveis, por exemplo. Eles só vão ser liberalizados em 18 anos. Há elementos dentro do acordo que são muito pouco ambiciosos”.

Trâmite

Apesar das negociações terem sido encerradas, as medidas não entram em vigor de forma imediata. O acordo ainda precisa ser ratificado internamente pelo Congresso de cada nação do Mercosul. Além disso, deve ser aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia, onde poderá ser barrado por quatro países contrários que respondem por 35% ou mais da população do bloco. Não há prazo para a finalização desse processo. O governo francês já anunciou que trabalhará contra o acordo.

“Alguns países europeus capitaneados pela França nunca tiveram conteúdo com a proposta, por mais restritiva que ela seja. Nós não estamos falando de livre comércio. Nós estamos falando de comércio administrativo. Quando você tem cotas, você tem restrições quantitativas. E mesmo dentro das cotas, você tem restrições quantitativas. cotas, você tem tarifas”, avalia Graça Lima.

Ele explica que há uma pressão dos agricultores franceses, que não tem condições de oferecer preços minimamente competitivos diante da concorrência estrangeira. Nesse cenário, o diplomata aponta que há uma perturbação política, uma perturbação social e uma perturbação eleitoral que desafia o governo do país europeu. “Embora possa ter benefícios em relação aos produtos industriais, a França se opõe abertamente ao acordo por causa do comércio agrícola”.

O acordo com Graça Lima, é uma situação semelhante à de 2019, quando as partes também anunciaram ter chegado a um texto conclusivo. Posteriormente, no entanto, os países manifestaram resistência em avanço com o acordo. Em meio ao aumento do desmatamento na Amazônia, os europeus passaram a alegar, por exemplo, que seriam necessários compromissos ambientais mais amplos por parte dos integrantes do Mercosul. As discussões foram retomadas em 2023.

Segundo avaliou o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, o novo acordo é “bem diferente” do anunciado em 2019. Ele afirmou que o governo anterior, liderado por Jair Bolsonaro, teria pactuado condições que seriam “inaceitáveis”.

“Conseguimos preservar nossos interesses em compras governamentais, o que nos permitirá implementar políticas públicas em áreas como saúde, agricultura familiar e ciência e tecnologia. Ao longo do calendário de abertura do nosso mercado automotivo, resguardando a capacidade de fomento do setor industrial. Criamos mecanismos para evitar a retirada unilateral de concessões alcançadas na mesa de negociação”, destacou Lula.

Para Graça Lima, será um desafio garantir que o acordo contribua para melhorar as condições de vida das populações mais pobres nos países do Mercosul. “Um possível resultado pode ser a redução dos preços de queijos e vinhos que a França exporta para o Brasil e para os países do Mercosul. Mas em que isso beneficia o consumidor de baixa renda?”, questiona.

*Colaborou Vitor Abdala.

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